Um serviço de fornecimento de água e luz, que é uma obrigação do Estado garantir à toda população, quando privatizado, traz benefícios? Barateia a conta? O que você, leitor, acha da privatização do fornecimento de água e coleta de esgoto?

por Fernando Aires

Quem é contemplado pelo sistema de abastecimento da Companhia de Saneamento Básico do Estado – Sabesp, sabe que, se consumir até 10 m³ de água, pagará a taxa no valor de R$ 78. Isso significa que se consumir apenas 3 m³ de água, pagará o mesmo valor. Se não consumir nada, paga do mesmo jeito.

Muita gente questiona isso há anos – sem contar as tubulações velhas que mesmo sendo trocadas apresentam problemas e vários hidrômetros que, deixam o ar passar e claro, acabam gerando um consumo extra para quem paga. Ultimamente, por conta do racionamento de água – que ocorre mesmo com o nível das represas acima da média – todo dia à noite a água é cortada por volta das 22h, retornando apenas às 3h. 

Sem contar as manutenções realizadas sem programação e que deixam boa parte da população sem água o dia todo. A última ocorreu no Tatuapé e adjacências, no dia 23/06, durando quase 24 horas. E não houve qualquer aviso sobre a manutenção, causando surpresa e dificuldade à boa parte dos moradores.

Em 2015, o então governador do Estado, Geraldo Alckmin, iniciou obras de ampliação de captação de água em toda rede para tentar resolver uma das maiores crises hídricas da história, quando o paulistano estava bebendo água do volume 2, da reserva morta do Sistema Cantareira. Ou seja, quando estávamos “lambendo as poças de água” do reservatório, como em um desenho animado. 

Não, não é um exagero, para se ter uma ideia, naquele tempo, o Sistema Cantareira estava próximo de 20% NEGATIVO do seu volume. O valor estimado daquelas obras foi de R$ 3,5 BILHÕES. É para ter racionamento, atualmente? 

O governador na época, hoje, vice-presidente da República, chegou a dizer inclusive para este repórter: “Com estas obras, vai ser difícil faltar água em São Paulo, estaremos garantidos com o fornecimento”. Não foi o que ocorreu. 

Tudo isso, somado à ineficiência de inúmeros outros serviços públicos – Segurança e Saúde, por exemplo, e que são dever constitucional do Estado – desanimam a população que volta seus olhares com certo encantamento para a privatização, na esperança de que uma vez privatizado, um serviço se torne um pouco mais sério. É correto pensar dessa forma? 

Afinal, privatizar a Sabesp, a exemplo do que ocorreu com a Eletropaulo – hoje, Enel, seria uma boa alternativa?

O início da Sabesp

Para começar, a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo – SABESP, não é uma empresa qualquer. Aliás, a Companhia imprime uma imagem robusta no mundo inteiro, fornecendo serviços essenciais de água e esgoto para milhões de pessoas em todo Estado, já sendo uma empresa de capital aberto desde 1997 e com ações comercializadas na Bolsa de Nova Iorque desde 2004.

Com uma avaliação de mercado na casa dos R$ 50 bilhões, a Sabesp tem sua história na origem do desenvolvimento hídrico do Estado. Pouca gente sabe, mas no século XIX, em pleno Império, os serviços de saneamento básico no Brasil eram uma preocupação – acanhada – da iniciativa privada. Só a partir de 1893 é que, com a República, o Estado passou a ter envolvimento na questão, com a criação da Repartição de Água e Esgoto.

Contudo, segundo o professor e historiador Laurentino Gomes, autor dos livros “1808”, “1822” e “1889”, em um Brasil que era o maior território escravagista do Ocidente, quando a preocupação com fornecimento de água e esgoto não saia do núcleo da alta sociedade, o saneamento em quase todo país foi promovido por escravos durante aproximadamente 300 anos. Apelidados de “tigres”, os escravos recolhiam as fezes e urina da população: 

“Nessa época, a maior parte das casas não contava com banheiros, água corrente ou algum outro tipo de instalação sanitária. Por isso, os moradores das antigas cidades faziam as necessidades em penicos e outros recipientes de metal ou porcelana. Esses objetos ficavam sob as camas ou em armários até a manhã seguinte, quando eram esvaziados em grandes tonéis que comportavam todos os dejetos dos moradores da casa. Os grandes tonéis, por sua vez, eram carregados nas costas por escravos, que os levavam até o mar ou a algum rio e por lá os despejavam. É daí que vem o apelido destes escravos, porque enquanto carregavam os tonéis, parte dos resíduos vazava e escorria por todo o corpo do escravo, deixando-o com marcas brancas”.

Reestruturação e aquisição de empresas

Com a República, a Repartição agregou as pequenas iniciativas de saneamento e deu início a um sistema “corporativo”, que administraria tanto o fornecimento de água como de recolhimento de esgotos da população, mediante uma taxa de imposto, é claro. 

Com a criação do Plano Nacional de Saneamento, em 1973, no governo militar Emílio Médici, foi que surgiu a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo – SABESP, formada por uma sociedade de economia mista (Estado – Iniciativa Privada), com objetivo de ampliar a rede.

Hoje, conforme dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento – SNIS, dos 46,2 milhões de moradores do estado, 96,5% têm acesso ao sistema de rede de água, 90,6% habitam em residências com sistema de rede de coleta de esgoto, e por fim, 69,6% do volume de todo esgoto gerado no estado é tratado. Por sua vez, as perdas de água nos sistemas de distribuição são de 34,4%. Essas perdas podem ocorrer por causa de vazamentos, canos que se racham ou quebram ou ainda, fraudes cometidas por quem tenta manipular o hidrômetro tentando obter vantagens na conta.

Desde 1997, a empresa possui capital aberto na bolsa de valores, sendo listada na B3 com o código SBSP3. Já naquela época, o Governo Mário Covas (PSDB) desejava a privatização da Companhia. Em 2004, na Gestão Geraldo Alckmin (PSDB), a empresa estreou na bolsa de valores de Nova Iorque, a NYSE, através de ADS (American Depositary Stocks).

Atualmente, a Sabesp é sócia também das empresas Aquapolo Ambiental; Attend Ambiental e Paulista Geradora de Energia. É responsável por 10 milhões de conexões de água em 375 dos 645 municípios de SP, conforme informações da Companhia. 

Só no Estado, a empresa é considerada líder em saneamento, tendo um faturamento de 22 bilhões de reais em 2022. Desse montante, 25% (R$ 741,3 milhões) foram revertidos como dividendos aos acionistas, e R$ 5,4 bilhões, destinados a investimentos. 

E por que privatizar, afinal?

Atualmente, o Governo do Estado detém 50,3% do controle da Companhia, sendo o restante negociado nas bolsas brasileira (B3) e americana (NYSE). Se a Companhia cresce e obtém um lucro óbvio com o serviço prestado no Estado – apesar de muitas falhas – qual o interesse por trás da privatização? Quem garante, afinal, que o serviço será bem executado pela empresa que adquirir as ações do Governo?

O patrocinador da proposta de privatização da Companhia é o próprio Governo do Estado. Segundo a assessoria do Governo: “Não há condições de o Governo atingir as metas de universalização no fornecimento de água e coleta de esgoto, se não houver maior participação da iniciativa privada. A única forma disso ocorrer é através da privatização”.

Para tanto, em dezembro de 2023, a Assembléia Legislativa do Estado aprovou por 62 votos contra 1, o projeto de lei que permite ao Governo – acionista majoritário – vender as suas ações da Companhia no mercado. No mesmo mês, sem delonga, o projeto foi sancionado pelo Governador Tarcísio de Freitas (Republicanos). 

Na capital, no último dia 2 de maio, foi necessário aprovar uma nova lei na Câmara, autorizando o Executivo a aderir à privatização da Companhia e até mesmo contratá-la, futuramente, se julgá-la mais eficiente. A cidade de São Paulo responde por 55% do faturamento da Companhia em todo o Estado.

A lei anterior municipal, de 2009, determinava que, a prestação de serviços atual ao paulistano teria o contrato anulado, caso a companhia fosse transferida para a iniciativa privada. Assim, entrou em vigor a Lei 163 em uma votação polêmica, com diversos protestos, aprovada por 37 votos contra 17. 

Polêmica, porque muitas audiências públicas agendadas para saber a opinião do povo quanto à privatização foram ignoradas pelos poderes. Polêmica, porque boa parte da sociedade, que sofre com a burocracia e com a má gestão da Enel, teme pela piora dos serviços de saneamento.

“Aqui no Brasil, é tudo rápido e sem muita discussão e isso pode gerar problemas futuros. Eu não sou contra a privatização, muito pelo contrário, sou contra o governo fazer do jeito dele, de forma até autoritária e fazer com qualquer um, tipo, pagou, levou, não se importando com a população. A privatização é positiva sim, mas tem que ver quem vai adquirir, se tem competência para tal, qual o histórico da empresa no ramo, porque senão, teremos os mesmos problemas com uma ‘Enel 2’ ou uma ‘Segunda Telefônica’ e sempre pagando caro por isso”, afirma Maurício Toledo, advogado especialista em direito público.   

Segundo a assessoria do Governo: “O Governo não quer vender todas as ações e não quer ‘abandonar’ a Companhia, pelo contrário, a intenção é manter entre 15 e 30% a sua participação na Sabesp, mantendo o direito de veto e passando uma parte destas outras ações à iniciativa privada. Com isso, o único interesse por trás da privatização é o de garantir mais capital para a Sabesp, tornando-a mais eficiente e abrangente para todos os paulistanos. A expectativa é de R$ 10 bilhões a mais nos cofres da Companhia, o que resulta em mais serviços, mais estrutura, investimentos e outros aprimoramentos para a população do Estado, antecipando a meta de universalização de água e esgoto de 2033 para 2029. Para o Governo, sobram mais recursos para investir em outras áreas também importantes como educação, saúde e segurança pública”, afirma.

O Governo assegura também que, com isso, será possível reduzir as taxas de água que a população, hoje, sente pesar no bolso: “As taxas serão reduzidas, uma vez que com o Fundo de Apoio à Universalização do Saneamento no Estado de São Paulo – FAUSP, 30% do valor de venda das ações, além dos valores de futuros dividendos da Companhia, serão depositados justamente para arcar com os custos de obras e recursos que hoje recaem sobre o bolso do contribuinte”.

Uma vez privatizada, a Sabesp prevê investimentos também em obras de dessalinização de água, aportes na despoluição dos rios Tietê e Pinheiros, e em projetos relacionados às mudanças climáticas.

Vai acontecer tudo isso, mesmo?

Um estudo preliminar realizado pela International Finance Corporation (IFC), instituição do Banco Mundial, aponta que a redução da tarifa somente acontecerá com a ajuda Estatal, uma vez que os custos para cumprir a meta de universalização do saneamento são altos. 

Ou seja, será realmente necessário que o Governo cumpra o que está prometendo. Se não cumprir, além das taxas não reduzirem , todo cronograma de entrega das metas de saneamento estará comprometido.

Para Isadora Cohen, sócia da ICO Consultoria e especialista em infraestrutura, a privatização pode sim resultar melhorias para os municípios e para o bolso dos paulistanos: “Hoje, a Sabesp esbarra em diversas leis e regras, porque segue um regime, digamos, ‘semipúblico’, que gera amarras que dificultam a contratação de pessoas ou de material. Com a privatização, a empresa ganha mais autonomia e acelera o que necessitar, sem contar que o aporte financeiro se torna maior. É positivo sim”.

Para o comerciante e fotógrafo Wilson Dias, do Tatuapé, a expectativa não é das melhores: “Eu não acredito neles. A Enel faz um trabalho péssimo e é da iniciativa privada. A diferença é que se você desliga o relógio, você tem desconto na conta ou simplesmente não paga o que não consome. A Sabesp, não. Você fecha o registro e paga a taxa, mesmo sem consumir nada. É um absurdo. Outra coisa, a Enel leva horas para atender quando falta força. O último temporal que teve, esse ano, ficamos quase dois dias sem energia. O medidor quando passa, passa no horário que quer e a gente que não tem relógio exposto, tem que ficar preso em casa aguardando. É privatizado, então, qual é a garantia? Sinceramente, tenho saudade da Eletropaulo. Serviços de internet e telefonia são privatizados, olha a porcaria que são? Falta internet, falta telefone, você chama a Vivo, a TIM, a Claro e o que dá? A Vivo foi comprada pela Telefônica, aquela que adquiriu a Telesp quando foi privatizada e lembra quanta reclamação? Ah, expandiram a rede, todo mundo tem telefone e tal, mas que adianta expandir e não prestar um serviço bom? Cobrar caro e não atender às expectativas? Eu, realmente, temo pela privatização da Sabesp e que isso resulte em contas bem mais caras”, desabafa.

Para o investidor e especialista em negócios Vitor Sousa, da Genial Investimentos, as privatizações são distintas e não podem ser comparadas: “Não tem nada a ver uma com a outra. As pessoas estão confundindo, por serem serviços públicos, mas ocorre que os setores são diferentes, os investimentos são diferentes, as gestões são distintas. Primeiro, uma se trata de distribuição de energia e a outra é fornecimento de água e coleta de esgoto. São investimentos distintos, problemas distintos, e também é preciso levar em conta a forma como a privatização ocorreu em ambas, os modelos de privatização adotados. O da Sabesp, por exemplo, está bem adiantado, foi encomendado um estudo ao Banco Mundial para ver como poderia ser feito todo o processo de privatização, o que não ocorreu com a Eletropaulo, e o Estado quer manter sua participação, seu poder de veto, ou seja, não está se omitindo da responsabilidade. Diante disso, mesmo com a queda das ações na Bolsa, os investidores ainda vêem com bons olhos a privatização da Sabesp. Por isso, acredito na privatização da Sabesp”, conclui.

Municípios aderem à privatização

Após sanção do Governador, a Sabesp tentou renegociar seus acordos com todos os 375 municípios atendidos, no sentido de que a privatização possa ocorrer. Isso porque inúmeros contratos têm durações distintas, sendo o de Osasco, por exemplo, o próximo a vencer em 2029.  

Assim, no dia 20 de maio, 304 municípios paulistas já aprovaram um contrato único com a Sabesp, iniciando a criação de um conselho deliberativo que visa discutir as propostas de avanço na área de saneamento básico no Estado. São as Uraes – Unidade Regional de Serviços de Abastecimento de Água Potável e Esgotamento Sanitário. Com isso, pretende-se que as decisões sejam tomadas em conjunto com essas Unidades, no momento em que a Companhia, já privatizada, começar a investir recursos nestas cidades.

Desta forma, tais contratos de fornecimento de água e coleta de esgotos passarão a ter validade até 2060. Por sua vez, 18 municípios se posicionaram contrários à privatização, sendo alguns deles Mauá, Ilhabela, Franco da Rocha, São José dos Campos, dentre outros. 

O que acontecerá com eles? Eles poderão manter os contratos antigos com a Sabesp, porém, sem serem contemplados com a previsão de investimentos propostos na privatização.  

Como será a privatização e como está o processo?     

O modelo de privatização da Sabesp será o “Follow On”, considerado inédito. O que isso quer dizer? A proposta visa ofertar 15% das ações do Governo a um grupo de referência no mercado. Depois, outras 17% de ações para demais grupos interessados em adquirir uma fatia da Companhia. Tudo considerando que o Governo, sem deixar de ser um acionista, ainda mantenha o seu poder de veto na empresa.  

Em nota, o governador Tarcísio disse: “Obviamente, é um projeto que tem sua complexidade, mas vamos debater e explicar o quanto for necessário para mostrar as vantagens do que está sendo construído. Estamos construindo um modelo que universaliza o acesso, aumenta a oferta e segura a tarifa. É um modelo que vai ser exemplo para todo o Brasil”.

O Governador também empreendeu viagens pelos EUA e Europa, para se encontrar com representantes de fundos de investimento globais e grupos privados que tenham interesse na aquisição da companhia. 

Mas, tome aumento na conta…

Enquanto os discursos são de um jeito, na prática, as contas de água já tiveram aumento de 6,4%, aprovado pela Arsesp – Agência Reguladora de Serviços Públicos do Estado de São Paulo, no último dia 10 de maio. O aumento abrange todos os municípios operados pela Companhia.

Será que mesmo após a privatização, a tão sonhada redução de tarifa e principalmente, a universalização do saneamento básico no Estado, serão metas concluídas pelo Governo? Ou será apenas mais uma promessa de campanha para atender às expectativas de investidores e empresários do setor? 

Se ficar só na palavra, o Governador vai pagar caro nas urnas, em 2026. E haja água com açúcar no Republicanos.